terça-feira, 1 de julho de 2008

Alívio.

O dia em que Tom nasceu foi um dia como outro qualquer. Em meados de outubro, o tempo estava começando a esfriar e chovia lá fora. Como sua mãe saíra desprevenida de casa naquele dia, e a chuva viera de repente, ela, Lynette McGregor, havia se molhado muito na volta para casa, não percebendo que sua bolsa estava agora rompida, e seu filho, prestes a nascer. Somente com a chegada das cortantes contrações ela se deparou com o inevitável: teria um filho nos próximos momentos, e precisava chegar logo ao hospital.

Sua chegada ao hospital foi tranqüila, assim como o parto e seu pós-operatório. Seu filho, batizado com o nome de Tomas McGregor, era completamente saudável. Pesava por volta dos 3 quilos e meio e tinha cabelos muito pretos e finos, como os do pai. Pelo que tudo indicava, parecia que seus olhos eram castanhos, mas dentro de alguns dias de vida, se revelaram verdes, como os da mãe.

Contradizendo toda a normalidade do seu nascimento, Tom não era um menino nada convencional. Alguns diziam que ele tinha algo de misterioso, outros o chamavam de louco, outros simplesmente o descreviam como esquisito. O fato é que Tom tinha algo de diferente, e ninguém poderia sequer imaginar o que era.

Desde que Tom nascera, era desenvolvera uma estranha habilidade: ele podia sentir o que os outros estavam sentindo, e isso o afetava de várias maneiras. Demorou um pouco para Tom perceber o que exatamente acontecia com ele, uma hora ele começava a rir incontrolavelmente, tinha acessos de raiva furiosos ou até mesmo começava a chorar em situações totalmente inusitadas. Nenhuma criança ousava chegar muito perto dele, nem mesmo os adultos gostavam muito de sua companhia, pois ninguém sabia qual seria sua próxima reação.

Tom não conseguia entender o porquê de seus sentimentos, não compreendia porque ele havia chorado numa ida ao circo ou porque ele havia batido em quase todos os seus colegas de classe. Mas uma coisa era certa: ele sempre percebia quando alguém estava mentindo.

Permita-me deixar as coisas um pouco mais claras. Tom nunca conseguira acreditar em Papai Noel, Coelho da Páscoa ou Fadinha do Dente, por saber quando sua mãe estava inventando histórias para ele. Agora imaginem como sua infância foi difícil, seus colegas sempre queriam brincar de algo relacionado a conto de fadas e historinhas infantis, e ele ficava tentando convencê-los de que elas não existiam. E quando alguma das crianças ficava brava com ele, ele podia sentir a sua raiva e se tornava agressivo, e logo ele percebeu que o melhor para ele e para os outros seria se ele simplesmente se afastasse de todos.

Conforme ele foi crescendo, começou a entender da onde vinham todos aqueles sentimentos que não pertenciam a ele, vinham de outras pessoas. Com o passar dos anos, Tom foi aprendendo a separar os seus próprios sentimentos dos sentimentos alheios, mas nunca deixou de senti-los. Durante muito tempo ele tentou ignorar os sentimentos dos outros, mas isso foi ficando cada vez mais difícil.

Aos 12 anos, Tom havia há muito tempo perdido o respeito pelos seus pais. Somente ele sabia a capacidade do ser humano de dissimular, e por mais que seus pais tentassem, eles não conseguiam amar Tom pela pessoa que ele era. Era mais do que óbvio que eles foram ficando mais desapontados à medida que Tom crescia, como todos, o achavam muito estranho e tinham certo medo dele.

Ele não sabia realmente o que uma amizade significava. Jamais havia conseguido confiar em ninguém, e nem queria. Por sua condição especial, Tom achava que era único, e que não precisava de mais ninguém para enganá-lo.

Sua sorte no amor fora a mesma. Aos 19 anos, Tom começou a sentir necessidade de companhias femininas, mas nenhuma garota era boa o suficiente para ele. Às vezes, ele percebia que a garota gostava muito mais dele do que ele dela, outras, ele sabia que ele havia se apaixonado e ela não. Mas o pior de tudo não era isso, era saber exatamente quando elas queriam esconder algo.

Durante toda a sua vida, Tom procurou alguém que fosse puramente verdadeiro, mas nunca obteve sucesso em sua empreitada. Ele conheceu uma boa mulher e casou-se com ela, mas o casamento não foi duradouro, como nenhum de seus romances desde então.

Trabalhou como detetive na área de homicídios a vida inteira, entrevistando possíveis culpados para os crimes que ele investigava. É claro que ele sempre sabia quem era inocente ou culpado, mas muitas vezes a justiça não era feita por falta de evidências, e muitas vezes ele era obrigado a assistir pessoas inocentes irem para a prisão por culpa de falsas evidências.

Sua vida havia sido dura, mais difícil do que a vida de qualquer outra pessoa no mundo. No seu 83º aniversário, a morte veio lhe fazer uma visita, e quando ele a viu, perguntou: “Porque demorou tanto?”

Ela lhe deu um sorriso e o levou para sempre.

De seu primeiro casamento, nasceu Matthew McGregor, meu pai. Matthew, ou Matt, como era chamado, fez questão de usar a sua habilidade para outros fins. Viciado no jogo, usava o seu dom para trapacear em cassinos do mundo todo e se divertia com festas e mulheres à vontade. O fato de que ele nunca conseguiria amar ou ser amado nunca lhe incomodou.

Eu o vi apenas uma vez, o meu pai. Ao lhe dizer que eu era seu filho, eu imediatamente soube que ele não queria saber de mim, então nunca mais o procurei. Mas antes de despedir-se, ele me deu o telefone de seu pai, Tom, e me disse para procurá-lo.

Quando conheci o meu avô, pude sentir que ele estava realmente feliz em me ver, mas também senti uma tristeza profunda, como a que eu sentia. Eu perguntei para ele se algum dia isso tudo ia parar, e ele disse que eu poderia tentar me acostumar a viver com isso, mas que não pararia por mais que eu quisesse.

Durante anos eu tive raiva da minha situação, e durante anos eu tentei mudá-la de algum jeito. Tentei usar esse “dom”, que eu apelidei carinhosamente de “maldição”, para o bem das pessoas, como o meu avô fazia, mas não houve meios de parar minha própria frustração.

A história que eu acabei de lhes contar, foi a história de meu avô Tom, que ele me contou pouco antes de morrer. A minha história, veja bem, não foi nada diferente da dele. Por isso, espero que vocês todos entendam o meu sofrimento, e percebam que eu não posso mais levar essa maldição à diante.

Estou desistindo da minha vida, pois isso não é viver, e sim morrer um pouco mais a cada dia. Assim também estarei fazendo um favor aos filhos que não terei.

É com grande alívio que eu escrevo minhas últimas palavras.


4 comentários:

Vico Vinhal disse...

Eu não sei se isso é relacionado a carater, mas vc percebe qual eh a escolha de cada um. Mesmo que a educação dos dois seja mto proxima, pai e filho agem diferente, neto tb.

Encadeamento perfeito, vc le o texto sem fragmentar a compreensão.
Adorei esse texto renata.

Victor Meira disse...

Olha só que cadafalso: quando vi que Tom escolhera ser investigador, pensei "ele daria um puta psicólogo"... Aí eu vi caos que seria, e vi como Tom seria depressivo. Disso, pensei "Tom deveria ser artista.. talvez um ator, ou um clown, a la Chaplin, mesmo que pra teatro". Penso que ele teria sido feliz, ao supreender uma platéia ou um grupo que apreciasse seu ofício com as melhores entre todas as emoções e sentimentos. Ele sentiria o mesmo, e sua história teria sido outra.

É ótimo o texto, Rê. A entrada do Mathew descondiciona o cabresto que havia quando Tom era o foco e protagonista. E, por fim, a voz do narrador se tornando voz de personagem em primeira pessoa completa esse efeito de multiplicidade que faz a gente pensar em possibilidades, como eu fiz ali em cima.

Achei uma coisa que distoa: Tom tem seu dom-maldição desde pequeno, e mesmo assim, esperava que houvesse "verdade" nos homens. Isso me intriga um pouco. Esse idealismo dele, ou a falta da superação desse idealismo pejorativo, o joga na condição eterna da adolescência.

Sobre a estrutura, prefiro o texto sem o "adeus" do fim. O "adeus" tira a força de "É com grande alívio que eu escrevo minhas últimas palavras.", que é uma bela construção, forte, e passa, em si, todo o sentimento da personagem. Por isso, tomei a liberdade de ignorar o "adeus" em minha leitura, haha. Viva o texto desgarrado do autor! Depois de escrito, essa nossa carroça anda sozinha.

Enfim, rê, acho que tem o que se pensar aqui, e penso que é abertura pra bons diálogos acerca disso tudo.

Gostei, bacanérrimo.

Unknown disse...

Surpreendente.
Muito bom mesmo.

RobCoutinho disse...

Bom texto , nao sei se foi inpressão minha mas tem influencias de Heroes nessa estoria ?